Almada e os <i>desgraçados</i> anos 60

Gustavo Carneiro

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Meio sé­culo é muito tempo na vida de um homem. So­bre­tudo se essa é uma vida cheia de epi­só­dios mar­cantes e, al­guns, por­ven­tura do­lo­rosos. Seria, pois, na­tural que as re­cor­da­ções de um acon­te­ci­mento pas­sado há tantos anos fossem di­fusas ou mesmo con­fusas. Mas não é o caso.

Jo­a­quim do Carmo foi um dos par­ti­ci­pantes da ma­ni­fes­tação de 11 de No­vembro, em Al­mada, na qual perdeu a vida Cân­dido Mar­tins Ca­pilé, va­rado pelas ra­jadas de me­tra­lha­dora da po­lícia. Dela, dos seus an­te­ce­dentes e con­sequên­cias guarda, ainda hoje, vivas me­mó­rias.

Se­gundo re­corda, era já noite desse fa­tí­dico dia 11 quando a mul­tidão se con­cen­trou junto à Co­o­pe­ra­tiva Pi­e­dense para rumar a Al­mada. Entre os ma­ni­fes­tantes es­tavam muitos ope­rá­rios cor­ti­ceiros, como ele, para além de ou­tros, da Parry & Son, do Ar­senal do Al­feite ou do Olho de Boi. Al­guns vi­eram de fora – de Alhos Ve­dros, do Mon­tijo e mesmo de Silves. Cân­dido Ca­pilé vinha in­te­grado no grupo do Mon­tijo, onde aliás re­sidia.

«Toda a gente ficou sur­pre­en­dida por a po­lícia não ter ata­cado logo ali, no local da con­cen­tração. Dei­xaram-nos ir por ali acima», re­corda Jo­a­quim do Carmo. À che­gada à Rua Ca­pitão Leitão, rua cen­tral da então vila de Al­mada, onde se con­cen­tram as duas prin­ci­pais co­lec­ti­vi­dades e os pró­prios passos do con­celho, co­me­çaram os con­frontos. Aos tiros de me­tra­lha­dora, que vi­ti­maram o jovem co­mu­nista – «acho que foi um GNR que matou o Ca­pilé», lembra Jo­a­quim do Carmo –, os ma­ni­fes­tantes es­ca­param como pu­deram e por onde con­se­guiram. Uma e outra vez se re­a­gru­param para res­ponder à vi­o­lência.

Dias de­pois, uma mul­tidão con­cen­trou-se em Ca­ci­lhas, à es­pera do corpo de Cân­dido Mar­tins Ca­pilé, com ramos de flores. Mas este acabou por não passar o rio, sendo des­viado pela PIDE para o ce­mi­tério de Ben­fica.

 

Li­ber­dade, Paz, Am­nistia

 

Apesar de ser já então membro do Par­tido, Jo­a­quim do Carmo não es­teve en­vol­vido na or­ga­ni­zação da ma­ni­fes­tação. «O que fiz – isto ca­lhava nor­mal­mente à malta mais nova – foi dis­tri­buir uns “pa­pe­li­nhos”, rom­pendo a al­gi­beira e dei­xando-os cair» em vá­rios sí­tios, so­bre­tudo junto às fá­bricas. E também pintou uns panos, em casa de um tio (este sim, en­vol­vido na or­ga­ni­zação da ma­ni­fes­tação), onde se lia «Li­ber­dade», «Paz» e «Am­nistia».

Se a pri­meira re­cla­mação não pre­cisa de grande ex­pli­cação, o mesmo não se po­derá talvez dizer das res­tantes: a exi­gência de Paz prende-se com o início, nesse ano, da mo­bi­li­zação de jo­vens para a guerra co­lo­nial e a de Am­nistia com a rei­vin­di­cação de li­ber­tação dos presos po­lí­ticos, no­me­a­da­mente dos que eram da Cova da Pi­e­dade e de Al­mada: «havia muita malta presa, muitos da­queles que eram os mais ac­tivos nas co­lec­ti­vi­dades e no pró­prio Par­tido» e que ti­nham sido cap­tu­rados na sequência das eleições pre­si­den­ciais de 1958.

Nesse pro­cesso, que teve no con­celho uma grande di­nâ­mica – pri­meiro em torno da can­di­da­tura de Ar­lindo Vi­cente e de­pois em apoio a Hum­berto Del­gado – «muita gente que an­dava es­con­dida mos­trou-se. Mas era pre­ciso». Pas­sadas as eleições, du­rante as quais houve lugar a de­cla­ra­ções de vi­tória na Cova da Pi­e­dade e ce­le­bra­ções de rua, «acabou-se a festa. Foi uma razia», re­corda Jo­a­quim do Carmo.

 Mas as pri­sões não pa­raram por aí. De­pois da ma­ni­fes­tação de 11 de No­vembro, foram feitas muitas mais. Um dos cap­tu­rados foi um res­pon­sável local do Par­tido a quem apa­nharam a agenda. «Era um homem de saúde frágil e quando foi aper­tado falou. A PIDE guardou a in­for­mação que re­co­lheu. Ele não de­nun­ciou gente com res­pon­sa­bi­li­dade, mas os nomes e con­tactos que tinha na agenda. Pes­soal assim como eu, que par­ti­ci­pava nas coisas, in­ter­vinha nas co­lec­ti­vi­dades e vo­tava nas listas apoi­adas pelo Par­tido.»

No úl­timo dia de Abril de 1963, Jo­a­quim do Carmo foi preso. Com ele, «para aí uns quinze, só da Pi­e­dade».

 

Uma dé­cada de­gra­çada

 

«Eu nem me quero lem­brar da dé­cada de ses­senta. Pode ter sido muito boa para os Be­a­tles, mas aqui foi uma des­graça», re­me­mora o mi­li­tante co­mu­nista, hoje com 74 anos. A vida, essa, não era fácil – nessa al­tura, os ope­rá­rios «vi­viam em casas ter­rí­veis, sem água, sem luz, sem nada. Na parte velha de Al­mada e da Pi­e­dade só havia ca­se­bres» – e as pri­sões agra­vavam-na.

Muitos pi­e­denses, so­bre­tudo cor­ti­ceiros, foram parar aos ca­la­bouços da PIDE apenas por terem nomes iguais ou só pa­re­cidos com aqueles que a PIDE pro­cu­rava. «Não sei se os in­for­ma­dores ga­nhavam por ca­beça, mas fartou-se de haver pri­sões», iro­nizou. O que é certo é que isto fez com que hou­vesse gente a passar por «grandes di­fi­cul­dades e ten­tá­vamos apoiar as fa­mí­lias através de rifas e subs­cri­ções».

Houve ainda os que es­ca­param à prisão, fu­gindo da terra e em muitos casos do País, e ou­tros que sim­ples­mente emi­graram, vi­rando costas à fome e à guerra. O pró­prio Jo­a­quim do Carmo aca­baria por emi­grar para a Suécia, de­pois de sair da prisão. De lá vol­taria poucos dias de­pois do 25 de Abril.

A sua his­tória, aliás, podia dar um livro. Deu, sem dú­vida, uma boa con­versa.



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